acasadana

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

O ESQUECIMENTO É O ÚNICO ALIADO DA MEMÓRIA

I

Sinto as tuas palavras cravadas na minha memória. Hoje tudo faz sentido. Um sentido muito próprio que apenas eu poderia encontrar, em mim, nas minhas acções, nas relações que estabeleci com as pessoas que me rodeavam. Foi descobrir na coragem de assumir a verdade, que nos deixa na planície da calma e do silêncio, a ilha do verdadeiro diálogo, aquele que nos devolve a nós mesmos, no olhar do outro. Tudo como se fosse aquele encontro, aquela comunicação, que nos fizesse desaguar em nós mesmos, na verdade que encerramos, à qual muitas vezes, quase sem querer, sem mesmo saber, fechamos os olhos. Viver a escuridão do auto-desconhecimento é estar na mais perigosa floresta de ilusões. Viver de olhos fechados à luz que existe dentro de cada um de nós devolve-nos ao negro, à ausência de luz.
É viver desmembrado.

Hoje senti que espelhos se quebraram. Espelhos errados, imagens falsas de que me fiz prisioneira, no passado. O espelho quebra-se. A minha integridade é perservada.

É o momento mágico da verdade que não precisa de razões nem de justificações de qualquer espécie. Ela auto-revela-se-nos no momento que nos descobrimos no som da nossa voz, nos nossos gestos, na nossa palavra, na nossa acção, no sentimento imaterial que nos anima, que ganha corpo no nosso corpo, que se funde com ele, formando uma só massa, indestrutível na sua unidade, na sua unicidade, na sua força, no seu peso. Todos os nossos membros atingem o seu peso certo, aquele que desconhecemos, que não sabemos dizer qual é, aquele que não tem palavras, que não há palavras, mas que imediatamente reconhecemos como sendo o nosso. Sinto a minha alma transformada em lágrima que me escorre pelo rosto, guiada pelo conhecimento íntimo de cada curva, cada contorno, cada perfil. Ah, é o meu rosto, aquele pelo qual tantas vezes passei as mãos no desespero, no desespero do não-saber. Conheço o meu rosto melhor que a palma das minhas mãos, pois essas vejo-as e toco-as tantas vezes quanto o calor e o frio do meu corpo e da minha alma mo exige e pede. Mas o meu rosto, esse nunca o vi nos meus olhos, nenhum espelho mo devolveu intacto, ele mesmo tal qual, foram as minhas mãos, o meu tacto, que me disseram, um dia, como ele era. Dia do meu esquecimento, dia que esqueci. Um dia esqueci-me de como era o meu rosto.

II

A lágrima percorre a face, deixa um rasto frio, linha. Linha plena de sentido, desenho que recupera o seu significado outrora perdido. É a serenidade de alguém que descobre dentro de si o caminho onde antes se tinha perdido. Linha, fio. O fio de Ariadne. O fim do labirinto. O centro onde estão todos os monstros, filhos dos nossos medos, pais das nossas cobardias, dos nossos recuos, formas dos becos sem saída, retrocessos e hesitações, malhas que tecemos, em que nos envolvemos e retorcemos, sem já, quase, saber quem somos, onde estamos, para onde vamos, para onde queremos ir.

A alegria no silêncio da face que chora, que derrama as suas mágoas, que procura o seu rio, o seu riso. Ah, como sonho ouvir o som da sua gargalhada. Cristalino. O som sonhado de uma gargalhada está cristalizado dentro de mim, não mais o conheço, ele é esquálido, polifacetado, ele é um espelho quebrado, uma imagem destorcida, uma nuance de horror. Um grito silênciado, um gemido preso, um silêncio forçado que me arranha a garganta e dói. Dói-me a garganta de todos os risos abafados e engasgados, escondidos, omitidos, esquecidos, não-realizados. Uma concepção, um filho deficiente, manco, desfigurado, partido, quebrado, mal-amado. Há um mau cheiro que se liberta no ar, um mal-estar que nos afecta, há um corpo que não se endireita, é um membro que está atrofiado. Há uma putrefacção em todos os corpos, de todos quantos me cruzo, todos os dias, em todas as ruas, corredores da morte, corredores da vida. Há uma exalação, uma atmosfera, um ambiente húmido e gelatinoso, escorregadio. Tenho muito medo de escorregar, tenho muito medo de cair. Tenho um grito estrangulado na minha garganta que não me deixa sorrir inteira, deixar tremer todo o meu corpo, rir com todos os meus músculos, as minhas vontades, as minhas vontades mais secretas, os meus desejos, os meus anseios, as minhas necessidades, as minhas carências, as ingenuidades. As minhas carências escondidas. Não estarão elas em todas as minhas lágrimas, no meu riso, nas minhas palavras? Quando é que entrei neste acordo tácito duma falsa maioridade, porque não o é, é falsa, é falsidade, é omissão, é ocultação, esconder as penas, os meus desejos, as minhas falhas, todas as insuficiências, os erros, as dúvidas, as tristezas, as lágrimas que me escorrem pelo rosto? Este acordo tácito de não rir, de não rir, principalmente alto, de não poder ouvir o eco de uma gargalhada. É um crime. Os nossos pequenos crimes, erros, esquecimentos.

III

Os nossos pequenos crimes, erros, esquecimentos. Todos os caminhos que não percorremos e que, sem saber bem como, lhes fechámos as portas de acesso.

É bom sentir o fluxo e o refluxo dos dias no pulso, na mão que desenha e escreve na secreta ambição de reunir, sob o seu registo, a matéria universal de que se alimenta, talvez a própria vida, o seu sentido, o seu delinear. Tentar gravar a sombra dos dias, que por vezes cresce mais do que desejamos e se apodera de nós num lento escurecer de todas as esperanças, todos os sonhos que um dia nos fizeram caminhar. Recuperar num exercício de continuidade essa força silenciosa da persistência é hoje o nosso destino. Tento não sucumbir a todas as revelações, que dia após dia, se tornam para mim verdades duma vida que não quero viver. Não serão essas que fazem o meu dia, e, dia após dia, as minhas semanas, os meus meses, os meus anos, todo o tempo que lembro um dia vivo, mais todo aquele que não vivi, mais todo aquele que renegado, não consigo lembrar? Onde está essa memória que me alerta: Olha, há tempos que esqueceste, que escondeste, que não viveste na esperança que deles saísse o futuro, um futuro, como o daquele passado que hoje se tornou presente. Que é feito desses caminhos que se transformaram em becos no meu passado? Galhos secos, ramos, términos donde não germinou nenhuma flor, nenhuma vida. Será necessário recuperar a imagem da árvore da vida para a compreender? Mas eis que aí me deparo com toda a dificuldade inerente a tal acção, aquela que, precisamente, me impede o acesso a todo o meu eu, minha história, minha verdade. Talvez seja melhor assim, talvez fosse encontrar hoje em mim poderes que, a este tempo, me seriam letais. (Morta estaria, se de tudo me lembrasse) É a minha integridade que se antecipa, preservando-me de tudo que a ameça. Toda a minha vida está pois assente nesse estranho processo de seleção de que desconheço o critério. Penso que é esse critério, que no lento rumar dos dias, em que se configura o nosso destino, a nossa história, se vai lentamente tornando explícito, dá-nos a conhecer a nossa verdade (Ah, que verdade tão pequena e relativa, aquela que nos diz o que somos, de que matéria nos constituimos), aquela que nos embala nas noites em que nem o cansaço nos cerra as pálpebras, em que o medo, a dor, ou outra coisa qualquer difícil de dar nome, nos obriga a olhar com força a escuridão que nos envolve e que ansiamos avidamentamente que nos devolva ao sono reparador, ao sono do esquecimento da luz dos dias que um dia não quisemos ver.

IV

É contudo necessário lembrar, apenas na escuridão protectora do nosso quarto, esta nossa insuficiência estrutural de reter e de não-reter que nos desenha, num perfil pelo qual um dia seremos recordados, trazidos pelas palavras de qualquer um que pronunucie o nosso nome, evocando nele esse desenho duma pessoa, saboreando nos seus lábios o efémero prazer de produzir um som reconhecível por todos os que o ouçam, situando todos os seus ouvintes (um apenas, uma multidão ou as pedras) num universo que criei e consolidei em meu redor por todas as iniciativas que eventualmente me reconheceram, por todas as mensagens que foram capazes de entender (ou que fui capaz de transmitir) no meu permanente discurso. Tudo resto estará condenado ao silêncio.

Qualquer desenho vive no silêncio de todas as palavras que não foram ditas a seu propósito. Esse é o espaço do seu segredo, do inominável; talvez seja ele o nosso melhor testamento.